2011/05/19

Irmãos de Sangue


De vez em quando encontro uma pequena pérola como esta que me transporta até uns bons anos atrás  e me faz sorrir, de saudade. Como se perde ao longo do tempo  esta inocência, esta capacidade de nos ligarmos assim aos outros , sem reservas ,sem qualquer medo! Se  ao menos  as tivermos  compensado de algum modo com outras aprendizagens...
(Luisa)


Irmãos de sangue

Os dois rapazes deixaram-se ficar encostados à parede entre o restaurante e a esquina.
Ouvindo-os falar, percebia-se que conversavam em arábico.
Falaram-me quando eu ia a passar. Queriam uma indicação sobre uma carreira de autocarro. Não me aproximei muito e perguntei:
- São de Marrocos?
Disseram-me que um era, o outro era argelino.
- Conheceram-se aqui?
Sim. Somos irmãos de sangue!
- Como irmãos de sangue? Um argelino, o outro marroquino?
Mostraram-me as palmas das suas mãos direitas. Ambas apresentavam um sulco, a sarar, mas uma delas ainda com crosta.  Engancharam os polegares e apertaram as mãos uma na outra.
Ri-me. Lembrei-me da minha infância, dos pactos, das irmandades, das juras eternas, dos segredos de Sandokan, o Tigre da Malásia, das vinganças do Conde de Monte-Cristo.
A  gente fazia um golpe nas mãos uns dos outros e misturávamos os sangues.
- Então é assim que vocês são irmãos?! - perguntei.
Riram-se como dois putos.
- Sim, de sangue! - disseram com os olhos a brilhar.
E ensinei-lhes o autocarro.
Ainda hoje penso que é muito bom ter irmãos de sangue...

Joaquim Letria in Cais,  Maio 2011