2011/06/15

Jeremias #1

Encontrei ontem, passado mais de meio século, um amigo de infância. Na realidade, o Jeremias foi mais do que um amigo, foi o meu primeiro "melhor amigo".

Ontem reconheci o Jeremias pela forma estranha como caminha. Lembro-me que quando éramos meninos o Jeremias ficou com o pé esquerdo preso numa armadilha para cobras, que ele próprio tinha montado.

Aquela forma de se deslocar, compassada, com uma métrica bem definida e em ligeiro desequilíbrio para a frente, era só dele e foi por esse seu andar que o reconheci.

Jeremias vinha andando, nesse seu jeito, numa rua estreita da baixa de Lisboa, descalço, sujo, com roupas muito gastas, com três sacos de plástico nas mãos.

Aproximou-se da montra de uma loja, pousou os sacos e de um deles tirou um pano espesso que estendeu na laje de mármore maciça e inteira, na qual assentava o vidro da montra.

Deitou-se e deitado esticou-se para puxar para si um dos sacos, o da comida. Comeu bolachas de água e sal, comeu feijão directamente da lata e bebeu vinho branco do pacote.

Foi por livre opção sua que decidiu passar ali a noite naquela montra, naquela montra em particular e não noutra qualquer.

Na realidade, Jeremias tinha um grande número de montras que poderia escolher para dormir mas ontem apetecia-lhe aquela, a do dentista.

Às vezes gostava de dormir junto das montras de bancos e em sonhos imaginar-se a entrar por ali dentro, sem se deter em nada e a cumprimentar toda a gente, pessoas que estivessem à sua direita e pessoas que estivessem à sua esquerda, pessoas que estivessem atrás do balcão e pessoas que estivessem à frente do balcão, e toda essa gente, todas essas pessoas, o cumprimentavam, respeitosamente, no seu sonho.

Jeremias nunca entrou num banco... Não sabe a que cheiram nem sabe qual é a textura do chão que os seus pés descalços sentiriam.

Outras vezes Jeremias gostava de dormir nas montras de lojas de lingerie - e na baixa há muitas. Estas montras oferecem-lhe inspiração para sonhos mais ousados e sensuais. De manhã, quando acorda, às vezes, fica a olhar para os manequins na montra e a lembrar-se, ainda com o gosto dos beijos nos seus lábios, os momentos que viveram nessa noite, nas suas fantasias. Seriam só fantasias suas ou os manequins também fantasiavam?

Nem sempre os sonhos tinham a ver, de forma tão directa, com o tema da montra. Às vezes, um detalhe numa montra evocava outra montra e nessa outra montra Jeremias encontrava outro ponto de interesse e assim, em sonhos, percorria, numa vertigem, várias ruas da cidade.

Às vezes também lhe ocorria misturar tudo como, por exemplo, entrar no banco acompanhado por duas belas manequins de lingerie e ver toda a gente, as pessoas que estivessem à sua direita e as pessoas que estivessem à sua esquerda, as pessoas que estivessem atrás do balcão e as pessoas que estivessem à frente do balcão a cumprimentarem-no, respeitosamente, e a piscarem-lhe o olho.

Mas ontem não era nada disso que ele queria.

Ontem, ele queria dormir na montra do dentista porque se lembrava que há tempos tinha ido a esse consultório e quem o atendeu foi uma mulher que o acalmou e o fez deitar-se na sua cadeira recostada e o agarrou na sua cabeça com firmeza e cuidado, contra o seu peito. E nessa posição, com a cabeça entre aquelas mãos femininas, cuidadoras, e o peito da dentista, o Jeremias sentiu-se outra vez menino sendo cuidado pela sua mãe e recordou-se da sua infância, e ao recordar-se da sua infância lembrou-se de mim, o seu primeiro "melhor amigo".

Ontem, o Jeremias queria dormir ali porque queria sonhar comigo.




António, in "Memórias Inventadas"

3 comments:

Sofia Maul said...

que belo conto António... gosto muito destas memórias inventadas! obrigada por partilhá-las

contabandistas de estórias said...

Bom, António, estas memórias estão cada vez melhor. por este andar não sei onde é que vais parar... Parabéns, este Jeremias está belíssimo!

lu

António Gouveia said...

Obrigado pelas vossas palavras. É bom saber que gostaram :)