2011/05/31



...a Maria, assim se chamava a menina, sempre vira a alegria dos irmãos ao dizerem que eram bom enfiarem-se dentro de um livro.
Por isso, ela própria queria tentar também entrar num livro.
Pegou num onde havia uma porta ilustrada e, do outro lado, estava uma enorme extensão de areia junto ao mar.
Então, a Maria atira-se de cabeça para tentar entrar naquela página do livro, mas caiu e magoou-se. Mesmo assim não desistiu. Experimentou meter o braço como se fosse mergulhar numa banheira ou colocar o livro em cima da cabeça, como se estivesse a vestir a camisola. Nada funcionou.
A Maria decide então deitar-se no chão e começar a ler o livro, devagarinho, porque mal sabia ler.
Quanto o bibliotecário chega, repara que está no chão um livro aberto, mas nem sinal da Maria. Pega no livro e coloca-o na estante.
A mãe da Maria chega e, nesse instante, cai o livro da estante e aparece a Maria a correr, muito feliz e com os sapatos cheios de areia.
(Blogue da turma B, do terceiro ano, da Escola Básica de Santa Luzia, em Guimarães - 28 de Março de 2011)

...nós bem tentamos, mas a Maria é que sabia...

2011/05/28

conversa de sesta

Debaixo das sombras no jardim da biblioteca de Santa Maria da Feira a tentar fazer uma turbo-sesta antes dum Canto de Colo; tentativa algo frustrada pois uma fumava um cigarrito de enrolar, a outra fotografava e ambas não paravam de dar à língua:

S: Já viste como a vida dá cambalhotas, Cai?
C: É, né?
S: Há três anos eras tu a mulher casada e eu era a que fumava!!!
dueto gargalhado!

by sfaia

2011/05/26

hoje pensei nestes dois

Dois autores dos que eu mais prezo, cada um mais diferente do outro. Ainda bem que umas vezes estou mais Marguerite Yourcenar, outras vezes mais Mark Twain e outras vezes estou  mais outro qualquer ... dos que  eu gosto, claro.

Marguerite Yourcenar:
Acontece-me pensar que a ilusão é talvez a forma que as realidades mais secretas adquirem aos olhos do comum.



e de Mark Twain estas pequenas jóias:
Que seria dos seres humanos sem as mulheres? Seriam raros, extremamente raros.


e esta, tão actual:
Outubro é um mês particularmente perigoso para se especular na Bolsa, mas há outros: Janeiro, Agosto, Dezembro, Março, Julho, Novembro, Abril, Fevereiro, Maio, Setembro e Junho.


(luisa)

2011/05/25

Noites quentes

A chegada das noites quentes faz-me lembrar as minhas noites de menino que vivi em África.

Aquelas noites em que a minha avó me punha no seu colo e eu sentia o seu corpo magro na magreza do meu.

Mesmo sem colo macio, eu ali ficava a escutá-la quando ela me contava as suas histórias, histórias antigas que a avó dela lhe contava, ao colo, em noites quentes...

Sempre que estavamos perto do fim de alguma história, surgia o meu avô (parece que tinha pontaria, aparecer assim, sempre nesses momentos, mesmo antes do desfecho do mistério), com a sua longa cana de pesca na mão e um peixe a debater-se na ponta da linha.

Nessa altura, a minha avó levantava-se para ir amanhar o peixe e fazer o jantar e o meu avô ficava no lugar dela.

Perguntava-me o que é que ela me tinha dito e à medida que eu ia dizendo o que me ia lembrando, ele abanava a cabeça em desaprovação. "Não foi nada assim" costumava dizer.

Depois começava a contar-me como é que a coisa se tinha passado e eu ouvia as mesmas histórias, às vezes iguaizinhas às que a minha avó tinha contado, outras vezes com nomes, lugares e tempos todos trocados.

Quando o peixe estava pronto, naquela casa de pescadores, a minha avó começava a cantar e pouco depois, aparecia à porta de casa, feita com fitas de plástico coloridas para não deixar entrar moscas, o homem da perna de pau, um velho amigo da família que lembrava, remotamente, um pirata de alto mar.

Enquanto jantávamos, os três velhos não se fartavam de falar e, às vezes, muitas vezes, todos ao mesmo tempo, e quando contavam alguma coisa divertida riam estrondosamente, em sintonia, com as suas bocas abertas exibindo o peixe mastigado pelos poucos dentes que restavam...

E quando riam alto, a nossa vizinha de cima, a senhora Bela, descia as escadas de madeira com a mesma suavidade com que uma folha cai da sua árvore e sentava-se à volta da mesa, na qual poisava uma garrafa de pinga, que era o seu combustível para a conversa.

E nisto ficavam, à luz do fogareiro, das velas, do candeeiro e do mais que, em alternativa, houvesse para iluminar, até se apagar a última centelha de conversa.

Antes disso já eu tinha adormecido no colo da minha avó ou da senhora Bela, e quando o sono deles chegava, os quatro agarravam em mim, unindo as suas forças de velho, e depositavam o meu corpo mole na minha cama.

Um a um, despediam-se de mim de um jeito diferente e embalavam-me para a noite escura e quente.

Anos mais tarde, os adultos da minha família, diziam-me que aquelas histórias que eu recontava e que tinha ouvido deles eram invenção minha e também diziam que aquelas pessoas não existiam.

Sabem que mais?

Eram mesmo invenção minha, porque às vezes, onde não há nada, temos mesmo de inventar.




António, in "Memórias inventadas"

2011/05/23

é que, as vezes, sinto-me mesmo assim...

Era uma vez um homem que nunca conseguia acabar as coisas que começava. Compreendeu que não podia continuar assim. Por isso, um dia de manhã, levantou-se e disse: "Tomei uma decisão: de hoje em diante tudo aquilo a que der início..."

(Stefano Benni - A história da pulga do cão preto em "O café por baixo do mar")

2011/05/22



Hoje vou falar de mulheres.

Porque reencontrei este vídeo que tinha postado há muito e esquecido (o vídeo, não o que ele nos diz).
Porque lembrei de fazer o contraponto com este texto do Galeano.
Porque Renata Lins postou estas pérolas recolhidas de capas de revistas pelo Xico Sá.
Porque é bom ver que as coisas mudam, mesmo que devagar.

Porque gosto das mulheres que correm com os lobos.

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A Cultura do Terror
Eduardo Galeano

Sobre uma menina exemplar:

Uma menina brinca com duas bonecas e briga com elas para que fiquem quietas. Ela também parece uma boneca porque é linda e boazinha e porque não incomoda ninguém.

Do livro Adelante, de J. H. Figueira, que foi livro escolar no Uruguai até poucos anos atrás.

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O que querem as revistas femininas II (enxertos)
Xico Sá

“Se desconfiar da infidelidade do marido, a esposa deve redobrar seu  carinho e provas de afeto, sem questioná-lo.” (Revista Claudia, 1962).

“A desordem em um banheiro desperta no marido a vontade de ir tomar banho fora de casa”. (Jornal das Moças, 1965)

“A mulher deve fazer o marido descansar nas horas vagas, servindo-lhe uma cerveja bem gelada. Nada de incomodá-lo com serviços ou notícias domésticas”. (Jornal das Moças, 1959).

“Se o seu marido fuma, não arrume briga pelo simples fato de cair cinzas no tapete. Tenha cinzeiros espalhados por toda casa.” (Jornal das Moças, 1957).

“Não se deve irritar o homem com ciúmes e dúvidas”. (Jornal das Moças,1957).

E este aqui: “O noivado longo é um perigo, mas nunca sugira o matrimônio. ELE é quem decide - sempre!” (Revista Querida, 1953).

“Sempre que o homem sair com os amigos e voltar tarde da noite espere-o linda, cheirosa e dócil.” (Jornal das Moças, 1958).


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E palavras para quê?


e o mundo não se acabou!

2011/05/20

Maio maduro Maio


Estamos em Maio - para mim o melhor mês do ano. Maio não precisava de fazer mais nada para que eu gostasse ainda mais dele. Maio é depois das águas mil, por isso tudo está verde vivo e há flores a cumprimentar o sol; Maio tem fruta vermelha; Maio tem os dias looooooongos mas não tão longos que não dêem saúde, nem façam crescer; Maio tem as janelas abertas; Maio tem esta temperatura que nos faz festinhas na pele recentemente desnudada depois de meses debaixo de pano; Maio tem os primeiros mergulhos do ano em que não nos vibram os ossículos dentro da cabeça... não, Maio não tinha de fazer mais nada... 

E não é que hoje de manhã ele decide me oferecer uma gentileza (palavra que vou usar muito) extra que convosco partilho: os jacarandás de Belém!
 
 
Bom inicio de semana!
Sfaia

2011/05/19

Caracol

– Bom dia.
– Bom dia.
– Queria um bolo, se faz favor.
– Muito bem. Então e qual é o bolinho?
– É um caracol.
Muito bem. Um caracolzinho. Quer que o corte ao meio?
– Quero que o corte mas não ao meio. Corte-o entre a segunda e a terceira sílaba. Olhe, assim: cara-col.
– Muito bem. Mais alguma coisa?
– Não, é tudo. Quanto é?
– São noventa cêntimos.
– Muito bem, aqui está.
– Muito obrigado.
– Bom dia.
– Bom dia.


[António]
...a propósito de animais e livros...
(pequenas perolas de Stefano Benni)


Quem dentro do livro uma melga estatela
não faz cultura, mas poupa uma picadela.

O dragão come os livros e faz com eles fogo
e depois queixa-se que os livros acabam logo

O lobo todas as noites uiva ao vizinho
a sua versão do capuchinho

Uma pergunta feia:
cabem mais baleia num livro
ou mais livros numa baleia?

Irmãos de Sangue


De vez em quando encontro uma pequena pérola como esta que me transporta até uns bons anos atrás  e me faz sorrir, de saudade. Como se perde ao longo do tempo  esta inocência, esta capacidade de nos ligarmos assim aos outros , sem reservas ,sem qualquer medo! Se  ao menos  as tivermos  compensado de algum modo com outras aprendizagens...
(Luisa)


Irmãos de sangue

Os dois rapazes deixaram-se ficar encostados à parede entre o restaurante e a esquina.
Ouvindo-os falar, percebia-se que conversavam em arábico.
Falaram-me quando eu ia a passar. Queriam uma indicação sobre uma carreira de autocarro. Não me aproximei muito e perguntei:
- São de Marrocos?
Disseram-me que um era, o outro era argelino.
- Conheceram-se aqui?
Sim. Somos irmãos de sangue!
- Como irmãos de sangue? Um argelino, o outro marroquino?
Mostraram-me as palmas das suas mãos direitas. Ambas apresentavam um sulco, a sarar, mas uma delas ainda com crosta.  Engancharam os polegares e apertaram as mãos uma na outra.
Ri-me. Lembrei-me da minha infância, dos pactos, das irmandades, das juras eternas, dos segredos de Sandokan, o Tigre da Malásia, das vinganças do Conde de Monte-Cristo.
A  gente fazia um golpe nas mãos uns dos outros e misturávamos os sangues.
- Então é assim que vocês são irmãos?! - perguntei.
Riram-se como dois putos.
- Sim, de sangue! - disseram com os olhos a brilhar.
E ensinei-lhes o autocarro.
Ainda hoje penso que é muito bom ter irmãos de sangue...

Joaquim Letria in Cais,  Maio 2011

2011/05/16

no words...

"I read once that the ancient Egyptians had fifty words for sand & the Eskimos had a hundred words for snow. I wish I had a thousand words for love, but all that comes to mind is the way you move against me while you sleep & there are no words for that."                            www.storypeople.com

 "Li uma vez que os antigos epipcios tinham cinquenta palavras para areia e que os esquimós tinham cem para neve. Quem me dera ter mil palavras para o amor, mas tudo que me ocorre é a forma como o teu corpo se move a dormir contra o meu e para isso não há palavras."

2011/05/12

Página de escrita

Dois e dois quatro
quatro e quatro oito
oito e oito dezasseis
Repitam, diz o mestre
dois e dois quatro
quatro e quatro oito
oito e oito dezasseis
Mas eis que o pássaro-lira
passa a voar no céu
o menino vê-o
o menino chama-o
Salva-me, brinca comigo
passarinho!
Então o passarinho desce
e brinca com o menino
Dois e dois quatro
Repitam diz o mestre
e o menino brinca
e o passarinho brinca com ele
quatro e quatro oito
oito e oito dezasseis
e dezasseis e dezasseis fazem o quê?
Dezasseis e dezasseis não fazem nada
e muito menos trinta e dois
e de qualquer modo vão-se embora
e o menino escondeu na carteira
o passarinho
e todos os meninos
ouvem a canção
e todos os meninos
ouvem a música
e oito e oito também se vão embora
e quatro e quatro
e dois e dois
e um e um não fazem nem uma nem duas
um e um vão-se embora também
e o pássaro-lira  brinca
o menino canta
e o professor grita:
Vamos lá acabar  com a brincadeira!
Mas  todos  os  outros meninos  ouvem a música
e  as  paredes da sala
desmoronam-se suavemente
e os vidros das janelas  voltam a  ser areia
a tinta  volta  a ser  água
as carteiras voltam a ser  árvores
o giz  volta  a ser  rochedo
e  a caneta volta  a  ser  passarinho

(Jacques Prévert)

2011/05/11

Janela sobre as proibições - Eduardo Galeano

Ventana sobre las proihibiciones

En la pared de una fonda de Madrid hay un cartel que dice: prohibido el cante.
En la pared del aeropuerto de Rio de Janeiro hay un cartel que dice: prohibido jugar con los carritos porta-valijas.
O sea: todavía hay gente que canta, todavía hay gente que juega.

É o meu primeiro post, tinha de ser esta janela de Galeano, que gosto tanto de abrir…
Uma das primeiras vezes em que a abri foi em Coimbra, numa quinta com contos da Camaleão. Sala cheia, aquele clima bom e vivo que as noites organizadas pela Helena Faria e o Zé Geraldo têm.
Estava com Patrícia Orr, que era a convidada da noite.
Quando acabei de contar a janela e me sentei, Ana Filipa, uma amiga da Sofia que estava na nossa mesa, disse que eu não ia acreditar, que parecia incrível, mas num ali perto do rio havia um cartaz que dizia: proibido beijar.
Pareceu-me pouco provável uma coisa destas, mas depois eu e Patrícia nos pusemos a discutir se haveria ou não o tal cartaz e, caso houvesse, se seria a sério ou não…
Achamos que o assunto era importante o suficiente para justificar uma investigação e no dia seguinte de manhã fomos à procura do tal bar, que acabou por se revelar mais uma espécie de samba do crioulo doido, uma construção retangular à beira do rio, atafulhada de coisas para turistas, três ou quatro mesinhas num canto, quase perdidas no meio de tanta tralha, um balcão e, nas paredes, literalmente, milhões de tarecos pendurados.
Estávamos decididas a encontrar o tal cartaz e, mais, a fotografá-lo, porque uma coisa destas pede sempre provas materiais para que nos acreditem. Mas por mais que procurássemos no meio daquela profusão de coisas… nada. Nem sinal do dito cujo.
A dona do bar, vendo nós as duas ali plantadas no meio do seu nicho ecológico, olhando as paredes como perdidas e aparentemente sem a menor intenção de consumo, acabou por nos perguntar, meio mal-humorada, o que é que nós procurávamos.
Dissemos que procurávamos o cartaz de proibido beijar.
- Ah, isso? Está ali no canto! - e apontou para um espaço por cima da omnipresente televisão.
Era uma placa como as de trânsito, redonda, onde se via, a preto sobre um fundo branco, o perfil de um casal se beijando, com uma linha vermelha cruzada no meio, tal como nos cartazes de proibido estacionar, ou coisa que o valha.
- Já é um cartaz muito antigo, está aí há muito tempo - informou.
Perguntamos se aquilo do proibido beijar era a sério ou uma brincadeira, cheias de esperança de que brincadeira fosse.  
- Olhem minhas senhoras, nós aqui não temos nada contra os beijos, achamos normal, são coisas da juventude. Mas teve de ser, porque há gente que exagera… e isso não se admite.
E assim ficamos devidamente esclarecidas.
Não tomamos nem um café, numa espécie de vingança inútil.
Saí de lá pensando na vida amorosa daquela mulher e daquele homem que proibiam beijos. Retiro o amorosa. Saí, sei lá, meio desconsolada. Mesmo com o Mondego a faiscar ao sol, mesmo com o céu de um azul alucinado, e a cidade linda por trás.
Então Patrícia, com aquele sorriso matreiro dela, disse:
- No estejas así, Chica. Se hay cartel… es que todavía hay gente que besa!
Não conseguimos tirar a tal fotografia, a máquina da Patrícia ficou sem bateria. Não há provas.  
Mas juro que o cartaz existe, e a dona do bar também.
A Patrícia também existe.

E viva os que cantam, os que contam, os que brincam, os que dançam…
E viva os que beijam!

Cláudia Fonseca

2011/05/09

...no princípio era o TA TA TA. E toda a gente se entendia. 
Depois veio Babel, e o caos... e a biblioteca de Alexandria.




2011/05/06

Primeiro

Hoje começa a vida bloguista dos contabandistas... cada um dos cinco escolheu um dia de semana e fiquei eu com a sexta-feira. E cá estou: a escrever o nosso primeiro post... que responsabilidade! Depois de algumas horas a vasculhar os meus arquivos e a navegar pelas marés cibernéticas eis-me de mãos vazias quase vazias. Mas tens sempre tanta coisa para dizer, dizem os que me conhecem. Pois. Mas hoje não. Fui procurar histórias de princípios, de ovos, de sementes,... e encontrei esta sementinha que quero partilhar convosco:

bom príncipio-de-semana 
sfaia