2011/09/20

Retrato incompleto do meu avô, a partir de testemunhos dispersos

(Nota introdutória: antes de prosseguir leia "Pequena história sobre como os meu avós se conheceram", um post anterior, deste blog.)

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Sempre que vejo uma borboleta lembro-me do meu avô.

Tal como as borboletas, ele andava de um lado para o outro com ligeireza, com leveza, um pouco aleatoriamente, nunca ia em linha recta desde o local onde estava e o seu destino, qualquer que este fosse.

Esbracejava quando andava, falava sozinho, cantava e às vezes até dançava.

Parecia que os anos não lhe pesavam, continuava saudável e estava cada vez mais bonito.

Os seus olhos brilhavam intensamente desde há muito tempo, desde o momento em que tomou consciência de que estava vivo, e que estando vivo, um dia iria morrer.

Levava alegria contagiante, levava respeito pelos outros e pela vida. Por mais insignificante que fosse qualquer forma de vida, ele a respeitava com veneração.

Levava o peito aberto e um abraço forte nos seus braços, sempre disponível.

Levava uma piada de algibeira, um verso nos lábios, uma resposta pronta debaixo da língua, uma pergunta inquietante mas também a vontade de aplicar um murro justo se fosse necessário, apesar de nunca o ter feito.

Tratava cada pessoa como se fosse única, especial e última.

Queria sempre experimentar tudo, mesmo que tivesse de voltar atrás, para o fazer.

Um dia, já com os seus 74 anos, foi colocar um piercing, sem os meus pais saberem.

Mostrava-o só aos miúdos lá da rua, seus compinchas nos segredos que se sussurram ao ouvido, protegidos pelas mãos em concha, para não se escaparem e serem levados pelo vento.

Ensinava os miúdos da rua a andar de bicicleta, de carrinhos de rolamentos e até de skate.

Segurava-os para não caírem nas primeiras tentativas e quando já se aguentavam até os empurrava para os pôr à prova – era danado!

Quando se sentava para descansar e olhava para a minha avó, olhava-a do mesmo jeito com que contemplava, nas noites de Verão, a Via Láctea: deslumbrado e grato.

Estavam sempre juntos e até o corredor da luz, o percorreram juntos e de mãos dadas.

Morreram os dois abraçados durante um sono profundo, numa noite fria, de Inverno, depois de se terem amado, não uma última vez mas sim uma vida inteira.



António, in "Memórias Inventadas"

2 comments:

Tati said...

As tuas memorias inventadas criam lagrimas reais!!

Tati

Sofia Maul said...

que memória tão bela! obrigada por a partilhares! o teu avô borboleta era muito parecido com o meu avô peixe, menos o piercing!