2011/09/13

Pequena história sobre como os meus avós se conheceram

(Nota introdutória: antes de prosseguir leia "O homem da perna de pau", um post anterior, deste blog.)

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O meu avô e a minha avó nasceram no mesmo dia, no mesmo mês e no mesmo ano.

A minha avó nasceu à beira-mar, numa pequena aldeia, no seio de uma família de pescadores.

Quando ela era criança, costumava dizer que ainda antes de ter nascido já via o mar através dos olhos da sua mãe e já ouvia também as suas ondas.

Cedo aprendeu que a água e a espuma de cada onda limpam tudo o que está escrito na areia, e que cada onda traz um nova oportunidade de recomeçar e que só depende de quem está na praia a vontade de escrever algo diferente na areia, a cada dia, a cada onda, de cada vez que a areia é limpa.

Cedo aprendeu que era preciso ir ao mar para sobreviver e que o mar, às vezes, quando menos se espera, cobra o seu preço.

O meu avô nasceu na montanha, numa comunidade de camponeses.

O cheiro húmido da terra, o vento a passar pelas folhas das árvores, os sons dos nascimentos dos animais do campo são das suas primeiras memórias.

Cedo aprendeu os ciclos da terra, da sementeira e da colheita, da escassez e da abundância, da seca e da cheia.

Aprendeu que a terra dá sustento mas que exige trabalho; aprendeu que, com o passar do tempo, os vincos que se fazem na terra com o arado, o tempo os devolve no corpo do camponês.

Os meus avós cresceram, cada um do seu jeito, cada um no seu meio, à semelhança dos outros.

E crescendo, viam-se a si próprios como frutos da terra que iam amadurecendo.

Viam a natureza em seu redor que se multiplicava e se renovava, viam os bichos e os homens e as suas famílias, e em todos eles viam as as suas cumplicidades e os seus afectos...

Quando estavam prestes a florir para o amor, quiseram pela primeira vez, ir a uma festa popular, lá numa outra aldeia, longe, uma festa com baile a valer, uma festa onde iam muitas pessoas de outras aldeias.

O meu avô desceu a montanha, como a desce um rio.

A minha avó despediu-se do mar, levando areia nos bolsos da sua saia.

O meu avô procurava uma partida, a minha avó um porto de chegada.

E foi nessa festa, nesse baile, que se conheceram.

A minha avó olhou para o meu avô e o meu avô olhou para a minha avó e pensamentos novos ocorreram-lhes.

Entre eles estava muita gente, na realidade, pela sua timidez, entre eles, procuravam que estivesse toda a gente da festa.

Aos poucos, lá se foram aproximando, avançando uns quantos passos, poucos, em cada pausa de cada música, enquanto os músicos tragavam um copo de vinho e comiam um pedaço de pão, até que, alarmados pelo anúncio da última música, os dois se lançaram.

Lançaram-se um ao outro como se lançam os pequenos pássaros no seu primeiro voo.

Avançaram com o coração a explodir, o corpo descontrolado, aproximaram-se mais e viram-se, pela primeira vez, frente a frente.

E neste estado, com as faces próximas, as mãos a tremer, os olhos a transbordar de uma felicidade líquida, sussurraram, ao mesmo tempo, no ouvido um do outro:

– Encontrei-te!




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Nota: sabem uma coisa? Afinal, aquela não foi a última música. Os músicos, e quase todas as pessoas que estavam na festa, tinham percebido que aqueles dois precisavam de uma pequena ajuda...

Ainda bem que assim foi porque, caso contrário, sendo os meus avós tão tímidos, eu ainda corria o risco de não estar aqui para me recordar desta memória inventada.




António, in "Memórias Inventadas"

3 comments:

Ana Arnold Guerreiro said...

Adorei! Que encanto de encontro!
Obrigada pela partilha destas memórias de tempos por acontecer.
Jinhos.

contabandistas de estórias said...

Mas que avós tão especiais, os que tiveste na tua imaginação! Eu também queria ter uns avós assim, ou bisavós ou coisa parecida... mas olha, tem quem pode!
parabéns por estas memórias inventadas, António, são muito boas.
abraço, lu

António Gouveia said...

Obrigado pelos vossos comentários. Beijos :)